top of page

O CAMPONÊS E O INTELECTUAL

Estava ali o camponês deslocado na sala de espera do aeroporto. Um senhor humilde de mãos e pés calejados, o rosto com as marcas do sol, e o corpo o retrato do trabalhador rural. Barba feita, cabelo cortado, e somente um bigode grisalho. Vestes simples, calça, camisa de botão, chapéu preto e chinelo, como de costume num dia normal, já que a última vez que usou sapatos foi em seu casamento, há mais de 40 anos.

Seu comportamento se revelava um tanto ansioso e aflito por realizar em instantes a sua primeira viagem de avião na vida, cruzando o oceano a visitar sua filha mais nova, na Alemanha.

Também na sala de espera para o mesmo voo, já havia o percebido deslocado, um empresário e intelectual, do setor do agronegócio, que apesar de ambientado com aeroportos, não procurou se aproximar ou puxar assunto com aquele senhor. Ao menos, num primeiro momento, embora a distância fosse curta, apenas o observou curiosamente visto que chamava atenção pois destoava aos demais, e contanto não sabemos quais foram suas primeiras impressões. Fato é que em ambientes coletivos a todos observamos e por todos somos observados o tempo inteiro (salvo quando aficionados pela tela dos teles).

Entretanto, dada a hora do embarque dos passageiros, por ironia do destino, o lugar de ambos durante a viagem coincidiu de ser lado a lado. Se a viagem fosse curta, talvez não existiria o contato entre eles, mas atravessar o Atlântico sem sequer trocar palavras, seria algo impossível já que os assentos são tão próximos, e logo, o empresário tomou a iniciativa de se apresentar dizendo que estava indo à Alemanha, como faz a cada 3 meses, para negócios no setor de agroquímicos, pois trabalha para uma das maiores indústrias bioquímicas do mundo, a Bayer, como engenheiro químico e um dos representantes dessa corporação na América do Sul.

Por sua vez, o camponês humildemente disse que visitaria sua filha após cinco anos de intercâmbio da mesma após ser premiada por uma bolsa de estudos concedida pela Universidade de Berlim devido seu bom desempenho escolar numa escola rural no Brasil. Encarava esse desafio de voar, com a alegria de poder formar sua filha caçula, única entre os sete filho(a)s que teve essa oportunidade e pela família se dedicou, e a esperança de que ela retorne com ele para o território de origem, visto que fora apenas para realização dos estudos, e agora que concluiu gostaria de regressar, apesar de algumas propostas profissionais para que ela permaneça.

Ao perceberem um tema em comum, agricultura, após essa apresentação inicial, e já sem muitos assuntos, o químico querendo demonstrar-se superior ao camponês quanto os seus conhecimentos e função na sociedade, sugeriu que mudassem de tema. E então o camponês indagou sobre o que gostaria de prosear o amigo, Logo, o químico satiricamente propõe prosear sobre química molecular dos alimentos. Atento e sagaz, o camponês lhe responde que não entende muito de química, quanto mais molecular, mas sim de alimentos... mas a respeito do tema e do entendimento do químico, interpelou na sequência ao gosto do cliente. saberia o senhor me responder essa questão: A vaca come capim certo? certo. O cavalo também come capim certo? certo. A cabra, a preá e o coelho também comem capim correto? sim. Ora, se ambos se alimentam da mesma matéria, logo deveriam e defecam também a mesma, entretanto, por que ocorre no caso da vaca decorre um coco pastoso, o cavalo suas fezes em formato de bolotas e os outros em grandes e pequenas pelotas, respectivamente.


Para inverter a vergonha alheia e depreciar a forma autêntica de conhecimento do camponês, o químico sorriu em alto tom, disse que falar de merda não era importante e desviou o rumo da conversa para qual time de futebol o camponês torcia?


reflexões: colonialidade do saber / soberba científica x humildade originalidade do pensamento popular / especialização e perda da totalidade ou visão ontológica


"Yo creo que fuimos nacidos hijos de los días, porque cada día tiene una historia 

nosotros somos las historias que vivimos...

Eduardo Galeano

bottom of page